segunda-feira, 4 de abril de 2011

O Andarilho - Cap IV - O espelho

Seguindo meu caminho, cheguei a um lugar cinza e sem cor, parecia ser um vilarejo que a tempos estava esquecido. O que antes parecia ser um lugar de vida e felicidade hoje parece abrigar um passado sombrio e a tristeza da solidão. Já estava caminhando há horas e meu corpo sentia o cansaço. Resolvi para e descansar, pois além do cansaço a noite se aproximava também. Entrei em uma grande mansão que ali tinha. Assim que passei pela porta do hall de entrada, uma sensação tomou conta de mim, difícil de explicar, era como se sentisse alguém do meu lado. Aquilo me intrigou e resolvi investigar aquela mansão. Caminhando por seus corredores cheguei a uma grande biblioteca. A sala era redonda e suas paredes forradas de livros e mais livros, dos mais diversos idiomas, alguns já até esquecidos, no centro da biblioteca havia uma mesa com um esqueleto debruçado por cima de um livro empoeirado, intrigado com aquilo, fiquei curioso para saber o que aquele livro tinha de tão importante para alguém ter morrido ali. Peguei o livro e prossegui desbravando a casa, até que cheguei a um grande quarto. No quarto havia uma cama no centro, luxuosa, porém totalmente degradada pelo tempo, ao seu lado algo coberto por um lençol branco e velho e logo a frente da cama uma lareira. Fui até a lareira onde ainda tinha lenha em qualidade para me aquecer durante a noite fria que chegava. Sentei-me em frente à lareira acendi meu velho cachimbo e comecei a ler o livro que havia resgatado. Quando comecei a lê-lo, percebi que não se tratava de um livro e sim de um diário. O começo era feliz e alegre, quase um conto de fadas, porém durante sua leitura:

18 de Outubro 1416

"... Queira saber o que aconteceu. Em um dia nosso vilarejo, nossa casa, nossa vida. Tudo parecia perfeito. Por quê? Porque nós? O reverendo disse que estamos sendo castigados, e que o Demônio veio cobrar nosso débito. Mas o que fizemos de tão ruim para sermos castigados de tal maneira?..."


Ao que tudo parece, algo de muito ruim engoliu esse vilarejo. E esse parece ser o único registro da verdade por trás da escuridão que sobrevoa esse lugar junto aos corvos. Continuei a ler:

14 de Outubro 1416

"Hoje acordei durante a noite e meu amor estava sentado olhando fixamente para o espelho que ganhamos no dia do nosso casamento. Como se ele estivesse hipnotizado, não se mexia. Fiquei assustada com aquilo, ele ficou ali por horas e às vezes sorria."


17 de Outubro 1416

"Acordei com gritos horríveis, olhei do lado e ele não estava lá, quando olhei para o espelho o meu reflexo parecia ter vida própria ficou me encarando enquanto sorria da mesma forma como aconteceu com meu amor. Sai correndo. Tranquei-me na biblioteca, e aqui permaneço até que os gritos cessem."


17 de Novembro 1416

"Estou faminta... com sede... os ratos já não me alimentam mais.... deixo aqui...re..la..ta...d..o para aquele quem vier encontrar esse diário... por favor destrua ... aquele... es...pe..lho........."


Muitas histórias sobre a vida dessa jovem estavam relatadas naquele diário, mais seu final foi o que mais me intrigou. Parece que aquele vilarejo de alguma forma tinha sido contaminado por algo muito além do imaginável. E isso os levou a loucura e destruição. Mas o que seria capaz de levar um vilarejo e pessoas tão pacatas há autodestruição? E esse espelho o que será que ele esconde? Charadas na escuridão.
Enquanto estava sentado em frente à lareira, o vento conversava com as arvores em gemidos e múrmuros daquela noite fria e escura. Foi quando novamente aquela sensação me encontrou. Desta vez muito mais forte que antes. Confesso que minha mente mandava-me correr, porém meu corpo permanecia paralisado. Não conseguia olhar para trás. Nunca antes havia sentido aquele medo, foi quando ouvi uma voz que vinha como o sopro do vento e dizia: "não tenha medo... não tenha medo... olhe para mim... olhe." Me virei e o que antes estava coberto pelo lençol branco agora se mostrava no quarto. Era aquele sombrio espelho, citado no diário por aquela jovem, que de alguma maneira parecia ser o motivo para toda aquela destruição. Fui me aproximando dele, em passos lentos atento ao que me rodeava. Quando vi meu reflexo naquele velho espelho, dei um suspiro de alivio. Afinal tudo não passara do imaginário de uma garota solitária. Já estava dando as costas e voltando para lareira, quando me ouvi rindo. Novamente a mesma sensação fria e sombria. Parei onde estava e me voltei para o espelho meu reflexo agora sorrindo e com os olhos negros como a noite me encarava, aos poucos estava me sentindo fraco, precisava sair dali o mais rápido possível. Fechei os olhos e corri em direção à porta. Estava livre daquele transe, porém minha mente estava povoada de pensamentos, erros do passado, tristezas e decepções. Sentia-me horrível, depressivo.
Coração apertado, nó na garganta. O que era aquilo? Estava confuso, mesmo com todo meu conhecimento não conseguia achar um por que. Precisava ir até a biblioteca, peguei o diário e corri até lá. No caminho tudo se movia na casa, choros, gritos e gemidos. Um inferno de lamentações. Até que cheguei à biblioteca. Tranquei a porta e ali fiquei. Abri o diário, e procurei relatos de quando e quem deu o espelho. Foi quando encontrei:

28 de Setembro 1416

"... Estou tão feliz hoje, finalmente o sonho da minha vida se realiza. Meu grande amor ira concretizar nossa felicidade hoje em frente a todos. Não vejo à hora. Esta tudo tão lindo, tudo como sempre sonhei..."


10 de Outubro 1416

"... Nossa lua de mel foi fantástica, e hoje iremos finalmente abrir nossos presentes, estou empolgada para vê-los..."

"... de todos os presentes o que mais nos chamou a atenção foi aquele espelho e o cartão que acompanhava. Por que alguém escreveria: "todos serão condenados pelo vosso reflexo, que vos trairá a tona o que o passado na escuridão esconde.". Porém o espelho é lindo, decorado em vermelho de forma clássica. Ficará perfeito em nosso quarto..."


Ao que tudo indica, o remetente daquele cartão é desconhecido. Mas aquela frase não me é estranha, já á ouvi ou li em algum lugar. Busquei em minhas anotações, quando encontrei um relato referente a esses dizeres. Há muito tempo atrás, por terras hoje esquecidas, encontrei um povo de costumes inaceitáveis, permaneci entre eles alguns dias, observando sua perversidade uns com os outros. Foi quando no ultimo dia em que permaneci ali. Um profeta gritava para todos "todos serão condenados pelo vosso reflexo, que vos trairá a tona o que o passado na escuridão esconde." Dias depois em um vilarejo próximo, eis que a noticia chega de que o vilarejo em que estava havia sido totalmente destruído pelo fogo e que seu povo havia se mutilado. Aquilo me causou arrepios. Mas isso foi há tanto tempo. Qual seria a conexão daquele povo perverso com esse vilarejo pacato? Pelo visto o que seria apenas uma noite de descanso se desenrolaria em uma investigação. Tal mistério me intriga e preciso saber a verdade por trás de tudo isso. Resolvi então investigar o vilarejo, procurar pistas que me levassem a um motivo.
Depois de uma semana acampado naquele pequeno vilarejo procurando evidências, estava vagando por sua pequena capela, quando encontrei uma porta secreta, logo abaixo do altar. Quando abri aquele porão um mau cheiro horrível subiu para superfície. Aguardei algumas horas e desci por aquela passagem. Quando cheguei lá embaixo tudo fazia sentido. O padre daquela pequena comunidade oferecia crianças como oferenda na tentativa de invocar um Demônio em troca de poder. Porém pelo pouco que sei, sobre Demônios, eles nos vêem apenas como marionetes e nunca levariam qualquer tipo de acordo a sério. Infelizmente o padre não sabia disso. Juntando as peças do quebra cabeça o espelho na verdade é um portal por onde o padre entrava em contato com Demônio que manipulava os medos e aflições das pessoas, atormentando-as até que elas se matem ou lhes entreguem a alma.
Porém o demônio com tempo foi ficando cada vez mais faminto e depois de ter devorado quase que alma de todos do vilarejo, transformando-os em desalmados os únicos que ainda faltavam eram os jovens senhores daquela terra. Por isso o padre manipulado pelo demônio enviou o espelho como presente aos noivos concluindo assim os planos do demônio.
Pois com as almas que faltavam ele poderia se libertar novamente e trazer com ele vários demônios que usariam os moradores desalmados com recíprocos para andar sobre a terra. Porém a jovem conseguiu escapar e com apenas uma alma faltando o demônio não conseguiu se libertar.
Sendo assim o único jeito de libertar aquele lugar dessa maldição é destruindo o espelho. Segui até a mansão, e conforme cruzava o vilarejo sentia calafrios, angustia e sempre com a sensação de alguém me observando. Gritos e gemidos de dor ecoavam. Rugidos de uma fera, pronta para destroçar sua presa. Finalmente adentrei a mansão e continuei em direção ao quarto onde estava o espelho. Os gritos aumentaram e conforme me aproximava me sentia mais fraco e a angustia agora estava quase me sufocando. De frente para o espelho, vi meu reflexo me encarar com aqueles olhos vazios e com um sorriso sarcástico. Sem muito demora, levantei o cajado que carregava e destruí o espelho. Uma fumaça vermelha saia de seus estilhaços, enquanto as almas aprisionadas pelo demônio eram libertadas. A mansão parecia desmoronar e os gritos da besta eram ensurdecedores. Ao fim de tudo aquilo, restavam apenas cinzas e pedaços de vidro, já amanhecia o oitavo dia, juntei minhas coisas e segui meu caminho. O vilarejo finalmente pode descansar em paz depois de pagar um alto preço pela hipocrisia e ganância daqueles cegos pela sua crença...

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